2 de jul. de 2015

Ashtanga Yoga: Os Oito Membros do Yoga

Por Vanessa Malagó

Em nossos artigos anteriores sobre os Yoga Sutras tratamos sobre o ciclo vicioso em que nos vemos presos, a partir da atuação dos kleshas, causadores da dor e sofrimento humanos.O véu de avidya nubla as nossas percepções, expressando-se de diferentes maneiras. Às vezes se faz presente como orgulho, apego, rejeição, ansiedade ou medo; de acordo com a forma em que se manifesta, seja como asmita, raga, dvesa ou abhinivesa.

(Antes que você prossiga a leitura desse texto, se desconhece alguns dos termos que tratamos acima, recomendamos que leia nossos artigos anteriores: “Sofrimento e Libertação”, “Kleshas: As Raízes do Sofrimento” e “Yoga é sair do automático”.)

Nas palavras de Desikachar (2007) avidya pode ser entendida como o resultado acumulado das nossas muitas ações inconscientes e modos de percepção que carregamos mecanicamente por anos. “Como resultado dessas respostas inconscientes, a mente torna-se mais e mais dependente de hábitos, até que aceitamos as ações de ontem como as normas de hoje”. Aí reside toda a base de funcionamento do processo de reação e condicionamento da mente. Nossas ações de hoje criam impressões no inconsciente que nos impelem para uma determinada direção. Caso não haja um esforço para redirecionar essas tendências, reagimos, aprofundando ainda mais essas impressões. Como então escapar disso? Como evitar a repetição contínua desses padrões de reação? Condicionada como está, pode a mente livrar-se de seu condicionamento e tornar-se livre?

O propósito da prática do Yoga é eliminar as impurezas, remover os obstáculos que nos impedem de viver o presente de forma plena, é reduzir a névoa de avidya para que possamos ver com clareza. E nesse estado de presença, sermos capazes de AGIR e não mais REAGIR.

O sistema de Yoga delineado nos Yoga Sutras é composto de 8 partes e é conhecido como Ashtanga Yoga (ashta=oito, anga=membro). São elas Yama, Niyama, Asana, Pranayama, Pratyahara, Dharana, Dhyana e Samadhi.


Essas partes são muitas vezes consideradas como passos ou estágios, o que pode indicar um relacionamento sequencial. Cada uma delas abre caminho para a seguinte, entretanto elas são interdependentes. Em minha opinião me parece mais apropriado identificá-las como partes e não estágios, já que, até certo ponto, é possível praticá-las sem respeitar a essa sequência. Outro fator a considerar é que quando tratamos de estágios, a tendência é pensar que se pratica cada parte de uma vez, ou que, deve-se esgotar cada estágio para então passar ao seguinte.  O fato é que várias delas podem estar simultaneamente presentes em uma prática e como comenta Mehta (1995) “a disciplina do Yoga é um processo contínuo. Não tem um fim ou um ponto culminante. [...] Se a vida está em um estado de fluxo, a disciplina que surge do viver também compartilha essa qualidade de fluxo... O óctuplo instrumento de Patanjali é tremendamente dinâmico, uma vez que emana do próprio ato de viver”.

No Ashtanga Yoga, Patanjali nos apresenta as ferramentas para purificação da mente. Descreveremos a seguir cada uma das partes que compõe seu sistema.


Yamas e Niyamas

Os yamas e niyamas são princípios que alicerçam a vida do yogi. Os yamas são princípios éticos que orientam o praticante a uma conduta externa em relação à vida de pleno respeito e integridade, de harmonização das suas relações com a sociedade, com os seres vivos e o mundo a sua volta. São eles ahimsa (não violência), satya (veracidade), asteya (não roubar), brahmacharya (moderação dos sentidos) e aparigraha (desapego) Os Niyamas correspondem a atitudes internas e são eles: sauca (pureza), samtosa (contentamento), tapas (determinação), svadhyaya (auto-estudo) e isvara pranidana (auto-entrega).

Os yamas visam harmonizar as interações sociais, enquanto os niyamas visam harmonizar os sentimentos internos do praticante. Segundo Satyananda Saraswati (2013) o objetivo desses princípios é o de reduzir o atrito entre nossas ações e nossas atitudes internas. A mente estimula nossas ações e as ações estimulam nossa mente. Se nossas ações não são harmoniosas, então a mente ficará perturbada. Da mesma forma, uma mente perturbada tende a produzir ações desarmoniosas. Os yamas e niyamas visam quebrar esse ciclo e assim acalmar a mente.

(Para saber mais sobre os Yamas e Niymas, veja o artigo: Yamas e Niyamas – Alicerces da prática yóguica.) 

Asana 

Asana pode ser traduzido como postura. Segundo Satyananda Saraswati (2002) asanas são posições específicas do corpo que abrem os canais de energia e centros psíquicos, são ferramentas para aumentar nossa consciência e para promover uma base estável para a exploração de nosso corpo, respiração e mente. 

De acordo com os Yoga Sutras, o asana deve apresentar duas qualidades: sthira e sukha. Sthira é estabilidade e sukha refere-se à habilidade de permanecer confortável numa postura. As duas qualidades devem estar igualmente presentes no asana. Desikachar (2007) comenta que “quando fazemos uma postura ou executamos um movimento que causa tensão, é difícil notar qualquer coisa além da tensão. Quando sentamos numa posição de pernas cruzadas, talvez nosso único pensamento seja a dor em nossos tornozelos apertados. Fazendo isso, não estamos realmente no asana que nos empenhamos a fazer – obviamente ainda não estamos prontos para essa posição. Em vez disso, deveríamos praticar antes algo mais fácil. Essa ideia simples é a base de toda a prática de yoga. Praticando as posturas progressivamente, atingimos gradualmente mais estabilidade, atenção e conforto.”

No asana partimos daquilo que nos é mais concreto, nosso próprio corpo, para então atuar sobre aspectos mais sutis. Nas palavras de Satyananda Saraswati (2002) “A mente e o corpo não são entidades separadas, ainda que haja uma tendência para pensarmos e agirmos como se fossem. [...] A prática de asanas integra e harmoniza corpo e mente. Tanto o corpo como a mente permitem o desenvolvimento de tensões e nós.[...] O objetivo do asana é aliviar esses nós. Os asanas aliviam as tensões mentais , lidando com elas no nível físico, atuando somática e psicologicamente através do corpo e da mente.” 

Uma afirmação dos Yoga Sutras sobre o efeito dos asanas é de que quando os dominamos, somos capazes de lidar com os opostos. Na interpretação de Desikachar (2007) “ser capaz de lidar com os opostos não significa sair seminu num clima frio ou vestir roupas de lã quando estiver calor. Ao contrário, significa tornar-se mais sensível e aprender a se adaptar, porque se conhece melhor o corpo; podemos ouvi-lo e saber como ele reage em diferentes situações. [...] Uma vantagem da prática de asana é que ela ajuda o praticante de yoga a se acostumar com situações diferentes e ser capaz de lidar com diferentes exigências”. 

Os asanas conferem saúde e vitalidade para o praticante, preparando-lhe para a prática de pranayama e pratyahara, o que só é possível quando há força, firmeza e flexibilidade no corpo.

A via de mão dupla entre corpo e mente nos mostra que não apenas a mente está sujeita ao condicionamento, mas também o corpo. Nesse sentido, os asanas são também instrumentos para quebrarmos padrões e condicionamentos. A flexibilidade do corpo vai além do aspecto físico, influenciando nossos estados mentais e emocionais. Kupfer (2000) faz uma colocação interessante nesse sentido: “O Yoga quer dar um corpo novo ao praticante, que ele mesmo irá construir, célula por célula, fibra por fibra. Usando esse novo corpo como instrumento, ele poderá avançar a passos largos em direção à meta do Yoga.” De acordo com ele, a construção desse novo corpo possibilita ao praticante perder a identificação com o antigo corpo, vinculado às couraças de tensão muscular e às impressões mentais inconscientes.


 Pranayama

 A palavra pranayama deriva de dois termos sânscritos: prana, que significa força vital, energia e ayama, que significa alongar, expandir. Pranayama é o processo através do qual se expande e se intensifica o fluxo da energia no interior do corpo.

Conforme explica Desikachar (2007) “prana pode ser descrito como algo que flui continuamente de algum lugar dentro de nós, preenchendo-nos e nos mantendo vivos: é a vitalidade.” Ele afirma que nosso estado mental está intimamente ligado à qualidade do prana dentro de nós. “Uma pessoa doente ou agitada desperdiça prana para fora do corpo, porque há bloqueios impedindo o fluxo de prana internamente. Uma pessoa em paz e saudável mantém mais prana dentro do corpo”.

Há uma conexão íntima entre respiração e prana e essa conexão nos permite manipular prana mediante o controle da respiração. Segundo Desikachar (2007) “Uma vez que conseguimos influenciar o fluxo de prana pelo fluxo da respiração, a qualidade da nossa respiração também pode influenciar o nosso estado mental, e vice- versa. Em yoga, tentamos fazer uso dessas conexões para que o prana se concentre e possa fluir livremente dentro de nós”.

Assim, aprendendo a manipular o ritmo respiratório podemos influenciar diretamente nossos estados mentais, e com isso, preparar a mente para a prática de dharana, dhyana e samadhi.  


 Pratyahara

Pratyahara é derivada de duas palavras sânscritas: prati e ahara. Ahara significa alimento e Prati é uma preposição que significa contra ou longe de.  Pratyahara pode ser traduzido como  afastar-se daquilo que nutre os sentidos. Trata-se de um processo de interiorização, de retirada da mente para dentro de si mesma.

Muitas vezes pratyahara é interpretado como tornar os sentidos não responsivos, é isolar a mente completa e voluntariamente do mundo exterior. Mehta (1995) vai num sentido contrário a isso e questiona: “A espiritualidade significa um estado de insensibilidade? Ela exige a morte das respostas dos sentidos?[...]Se pratyahara causa embotamento das respostas sensoriais certamente não é um instrumento que conduz à comunhão espiritual que samadhi fundamentalmente é.”

De acordo com ele, pratyahara não é o desligamento dos sentidos aos estímulos do mundo exterior, mas ao contrário um estado de grande receptividade dos sentidos. Ele argumenta que a mente, em seu condicionamento, interfere continuamente em nosso processo de percepção. A mente “busca continuidade e segurança, e isso pode ser garantido apenas se os sentidos e o cérebro não lhe apresentarem materiais completamente novos. Na presença de algo novo, a segurança da mente fica, naturalmente, ameaçada, pois, sob seu impacto, a mente é compelida a revisar suas próprias conclusões”.

Ele complementa: “Quando a mente recolhe-se, abstendo-se de toda intervenção no processo perceptivo, os objetos da mente começam a desaparecer e aparecem os objetos da vida. É então que os sentidos recebem o que lhe cabe. Contudo, tendo se acostumado a funcionar em benefício e sob a direção da mente, os sentidos, no início, sentem-se perdidos quando a mente se recolhe.[...] Os sentidos quase que forçosamente trazem a mente de volta e exigem sua intervenção.  Isso ocorre em virtude de os sentidos não terem sido reeducados e serem incapazes de agir sem a direção da mente.”

Assim, para ele, pratyahara é a reeducação dos sentidos. Com  a mente recolhida, os sentidos começam a funcionar de uma maneira nova e tornam-se extremamente aguçados. Isso resulta na ativação do cérebro, que passa a funcionar em seu pleno potencial.

Niranjanananda Saraswati (1996) também parece ter uma visão em relação à pratyahara distinta daquela que a descreve como uma técnica para a retração dos sentidos. Ele considera pratyahara um método pelo qual podemos internalizar nossa consciência.  Ele afirma que pratyahara envolve diversas etapas e começa por tornar-se consciente do que está acontecendo externamente e como reagimos a isso. A etapa seguinte envolve o reconhecimento e consciência do processo mental associado aos sentidos. Como um cheiro pode desencadear uma memória? Como pode desencadear sensações de prazer ou aversão? Como isso nos afeta? Depois de reconhecer aquilo que experenciamos externamente e internamente, chegamos ao último estágio, em que ganhamos controle sobre nossas ações inconscientes e reações dos sentidos e da mente.  “Uma vez que somos capazes de dominar o processo de pratyahara podemos fazer muitas coisas com nossa mente. Ela se torna desperta e uma mente desperta é algo maravilhoso de se ter.”

Dharana
Dharana deriva da palavra sânscrita dhr, que significa “sustentar”. A ideia essencial nesse conceito é o de sustentar o foco de atenção numa direção. Dharana é interpretado muitas vezes como concentração, que pode ter como apoio um objeto para observação, como por exemplo, um símbolo, uma imagem, um pensamento ou um som específico.

De acordo com Kupfer “essa unidirecionalidade da consciência não pode conseguir-se sem prática regular. Paradoxalmente, na prática de concentração não devemos forçar as coisas, não devemos entrar em conflito com a mente. Uma concentração forçada não é real, pois só provocará mais tensão”.

Mehta também aborda essa questão da tensão que é gerada quando na tentativa de focar num único ponto, iniciamos uma batalha com os fatores periféricos que nos distraem. Ele afirma que quanto mais resistimos às imagens e pensamentos periféricos, mais eles nos perturbam. De acordo com ele “a resistência não tem absolutamente lugar na disciplina espiritual”. Ele sugere que a mente se mova entre a área central e periférica, sem perder de vista o tema de interesse focal. A mente oscilará entre um e outro, mas sem tensão, fica mais fácil sustentar o tema central. “Quando não há conflito entre o focal e o periférico, surge na consciência do homem uma certa qualidade de relaxamento. ... O propósito de dharana é criar esse estado de relaxamento no qual a plena atenção se torna possível.”


 Dhyana

Dhyana é traduzido na maioria das vezes como meditação. Quando, em dharana, a atenção chega a seu ápice, transforma-se em dhyana. Dhyana é o fluxo ininterrupto da mente na direção do objeto de concentração.

Nas palavras de Desikachar (2007) “Dharana é o contato, dhyana é a conexão”.

Na visão de Mehta (1995), dhyana não é o pensamento sobre alguma coisa, mas a observação do movimento do pensamento. Dhyana é observar o fluxo do pensamento sem interrupção, é ver com absoluta clareza a corrente do pensamento.

Assim, dhyana é também, segundo ele, um percebimento das distrações da mente.
“É necessário compreender que a distração é a linguagem através da qual a mente conta sua própria história. [...] A distração é a maneira que a mente encontra para chamar a atenção para si. É como a criança que deseja contar sua história. Ela quer distrair os adultos de seu trabalho para que escutem o que ela tem a dizer. A mente emprega o mesmo método.”

Ele coloca que na meditação o problema não é a atenção, mas a desatenção. Assim, se o problema da desatenção for resolvido, a atenção vem naturalmente, sem esforço. Se escutarmos a história da mente sem interrupções, sem julgamentos e críticas, a mente fica esvaziada de seu conteúdo. Nesse esvaziamento, a “tagarelice” da mente chega ao fim e “desce sobre a mente um profundo silêncio”.


Samadhi

Dharana, dhyana e samadhi são diferentes etapas do mesmo processo mental.
Satyananda Saraswati (2013) ressalta que dhyana é composto de dois elementos: o fluxo contínuo de consciência em direção a um objeto, mas também a consciência de que se está praticando dhyana.Já em samadhi, a dualidade entre sujeito e objeto é abolida. Em samadhi desaparece a consciência da mente em relação a si mesma, Ficamos tão absortos em algo a ponto de nossa mente se fundir completamente com aquilo. Taimini (2001) exemplifica a questão: “Um grande músico é capaz de criar suas melhores obras ao perder-se por inteiro em seu trabalho. Um inventor resolve seus maiores problemas quando não está consciente de qualquer problema. É em tais momentos que essas pessoas têm inspiração e contato com aquilo que estão procurando.[...] É o desaparecimento da autoconsciência, que de algum modo, abre a porta para um novo mundo em que normalmente elas não têm condições de entrar”

Em samadhi a entidade psicológica do observador não existe. A mente e o objeto de meditação se fundem e os dois tornam-se um.

Ao tratar sobre a libertação dos condicionamentos, Krishnamurti (1977) nos fala sobre a mesma condição: “Quando vedes uma árvore, existe o observador, a entidade que vê, e a coisa vista. [...]O observador que vê a árvore tem várias imagens ou ideias a respeito de árvores; através dessas inumeráveis imagens ele vê a árvore. Pode ele eliminar essas imagens – botânicas, estéticas, etc – de modo que possa olhar a imagem sem nenhuma imagem, nenhuma ideia? [...] Se sois capaz disso, de olhar uma árvore sem nenhuma imagem, sem nenhum conhecimento, então o observador é a coisa observada. Isso não significa que ele se torna a árvore (uma ideia absurda), mas, sim, que desapareceu a distância entre o “observador” e a “coisa observada”. [...] trata-se de uma coisa realmente extraordinária, se puderdes chegar até lá. Por que, na observação só dessa coisa e nada mais, começa a existir o estado de liberdade- que significa estar livre de todo conflito.”

Assim, chegamos a samadhi, um estado de comunhão, que torna então possível a reta percepção, a clara compreensão. A névoa de avidya se dispersa. Nas palavras de Desikachar (2007) “Quando vemos a verdade, quando alcançamos um nível mais elevado do que nossa compreensão normal cotidiana, algo profundo dentro de nós fica mais calmo e em paz. Existe então um contentamento que nada pode tirar de nós”.

Referências:
- DESIKACHAR, T.K.V – O Coração do Yoga – 1ª. Ed. , Editora Jaboticaba- 2007
- KRISHNAMURTI, Jiddu – A libertação dos condicionamentos – 1ª. Ed., Instituição Cultural Krishnamurti – 1977
- KUPFER, Pedro – Yoga Prático, 3ª. Ed, Fundação Dharma - 2001
- KUPFER, Pedro – Artigo: Asana: Pensando com o Corpo, Jul/2000- Disponível em:
- MEHTA, Rohit – Yoga a Arte da Integração – 1ª. Ed., Editora Teosófica – 1995
- SARASWATI, Swami Niranjanananda – Artigo: Pratyahara, Set/1996, Disponível em: http://www.yogamag.net/archives/1996/esep96/pratyaha.shtml
-SARASWATI, Swami Satyananda-  Asana Pranayama Mudra Bandha, Yoga Publications Trust, India - 2002
- SARASWATI, Swami Satyananda – Four Chapters on Freedom- Yoga Publications Trust, India – 2013
- TAIMNI – A ciência do Yoga (Comentários sobre os Yoga-Sutras de Patanjali à luz do Pensamento Moderno) –  2ª. Ed. - 2001